Gaza: quem se defende de quem?

Cartoon de Carlos Latuff publicado em Brasil 247

Já com quatro meses de guerra decorridos, há uma narrativa perversa que se mantém e arregimenta paladinos da democracia israelita. Já repararam certamente que Israel não gosta que se fale dos milhares de mortos na Faixa de Gaza sem que se diga, com muita ênfase, que o Hamas cometeu um atentado terrorista a 7 de Outubro e que foi isso que originou a resposta israelita. Mas, se dissermos que antes do ataque de 7 de Outubro há décadas de ocupação da terra e do povo palestiniano, nesse caso Israel já pretende fazer crer que uma coisa não está associada à outra. Se para a guerra que decorre em Gaza, Israel considera que está justificada com o ataque de 7 de Outubro, para o que aconteceu a 7 de Outubro Israel já não admite que a causa possa estar na morte de milhares de palestinianos, na ocupação ilegal dos territórios palestinianos, na humilhação diária provocada por check-points, na prisão arbitrária sem culpa formada nem julgamento de milhares de palestinianos. A História é um somatório ininterrupto de acontecimentos. Pretender ignorar as origens e o desenvolvimento do conflito israelo-palestiniano para entendermos como se chegou até aqui é querer ver apenas com um olho.

A somar a esta constatação, registe-se a quase total ausência de argumentos que coloquem as coisas neste pé. A ausência de análises que ponham em cima da mesa o que Israel tem feito ao longo dos anos na Cisjordânia e em Gaza é assustadora e pode revelar uma de várias coisas: a leitura tendenciosa de alguns analistas que conhece os factos mas teima em ignorar parte deles; o desconhecimento da realidade e do histórico do conflito; a promoção de interesses que apenas os próprios poderão explicar; o alinhamento cego com as teses e posições norte-americanas; a oposição à causa palestiniana porque é habitualmente associada a forças políticas de esquerda. Ou tudo isto. É esta narrativa, alimentada regularmente na comunicação social, quase sem oposição, que cria condições para a proibição de manifestações de apoio aos palestinianos de Gaza e para reivindicar um cessar-fogo, com o argumento de que tudo é antissemita e tudo é discurso de apelo ao ódio.  

Israel criou uma argumentação de que esta é uma guerra entre o bem e o mal. Muitos analistas e comentadores aceitam acriticamente essa linha divisória entre os beligerantes, mas ela não corresponde à realidade. A guerra que ocorre na Faixa de Gaza, tal como a quase guerra na Cisjordânia, tem décadas, tem histórico, e é “apenas” um conflito entre dois povos que reivindicam o mesmo território e cujos líderes não conseguem (ou não querem) chegar a uma solução política.

Há ainda um outro argumento que raramente é referido quando se analisa a guerra na Faixa de Gaza: a anteceder o direito de defesa do Estado de Israel há um outro direito de defesa que é o do povo palestiniano. Afinal, quem tem o seu território ocupado tem o direito a defender-se do ocupante, ou não? Podemos discutir a forma como os palestinianos se defendem, mas também teremos de discutir a ocupação e a forma como ela é cada vez mais feroz. É curioso como isso raramente é reconhecido, apesar da sempre politicamente correcta referência ao Direito Internacional.

Qualquer defensor dos Direitos Humanos condena o ataque do Hamas a 7 de Outubro e as mortes (1.140 segundo a AFP) que esse ataque provocou. Qualquer defensor dos Direitos Humanos condena a morte de 27.585 palestinianos em Gaza (dados da ONU) e quase 77.000 feridos, desde 7 de Outubro. A pergunta que se faz após quatro meses de guerra é simples: quantos palestinianos terão de morrer em Gaza para que a guerra termine?

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