A Narrativa do Hamas

Capa do documento do Hamas divulgado a 21 de Janeiro.

Mais de 100 dias depois do ataque de 7 de Outubro, o Hamas tornou públicos os motivos do ataque e uma explicação do que aconteceu. Sabemos que em situações de guerra as partes envolvidas tentam fazer prevalecer a sua própria leitura dos acontecimentos e das decisões. É normal que assim seja, mas temos agora um documento em que o Movimento palestiniano diz que pretende dar a sua versão dos factos e dá uma resposta estruturada a algumas das acusações que lhe têm sido feitas, chamando a atenção para o histórico do conflito que é frequentemente ignorado e apontando o dedo a factos que não são displicentes. O Hamas assume que o ataque foi “uma etapa necessária” para responder a tudo o que Israel tem feito contra o povo palestiniano ao longo do tempo, assume que foi uma operação militar em que se registou um “caos” na zona de fronteira (entre Gaza e Israel) e na qual ocorreram alguns erros, mas nega que tenha visado os civis israelitas. Os civis que foram atingidos, diz o Hamas, foi “por acidente no decurso dos confrontos com as forças de ocupação”: “Evitar danos aos civis, especialmente às crianças, às mulheres e aos idosos, é uma obrigação religiosa e moral dos combatentes das brigadas al-Qassam”.

Ouvir as duas partes

Antes de ser acusado de estar aqui a defender o Hamas, digo apenas que gosto sempre de ouvir os dois lados da guerra. É uma questão de equilíbrio. Sei que pode não ser conveniente a quem olha para os conflitos armados como se fosse um jogo de futebol onde as claques insultam o árbitro e os adversários, mas essa nunca foi a minha atitude. Podemos concordar ou não com a versão do Hamas, tal como em relação a Israel, mas convém ter o mesmo sentido crítico em relação à abundante informação que nos chega. Sem qualquer preconceito e sem diabolizar nenhuma das partes só porque sim.

Lamento que o documento do Hamas esteja em língua inglesa, mas é o que há. Após descrever os 75 anos de ocupação, os mortos e presos palestinianos, a crescente ocupação de território, a humilhação e a escalada recente com o actual governo, o Hamas pergunta: o que poderia o mundo esperar que o povo palestiniano fizesse?

Neste documento, o Hamas lembra os milhares de mortos e feridos palestinianos ao longo dos anos, a crescente ocupação de território palestinianos, os milhares de presos palestinianos e lembra ainda alguns aspectos associados ao 7 de Outubro que precisam de esclarecimento óbvio: a mentira dos 40 bebés que teriam sido degolados; as alegadas violações que teriam sido cometidas por membros do Hamas e que ainda não foram comprovadas; as notícias da própria imprensa israelita sobre a alegada morte de muitos israelitas a 7 de Outubro, vítimas das próprias forças de defesa de Israel (quando responderam ao ataque do Hamas) e de que há testemunhas israelitas citadas na imprensa; muitos dos israelitas civis que morreram aquando do ataque do Hamas são colonos que estavam armados. São alguns dos aspectos mencionados no documento do Hamas.

Eficácia israelita

Seja qual for a guerra, convém saber o que dizem as partes em conflito e que leitura fazem dos acontecimentos. Chamemos-lhe propaganda (é essa a acusação frequentemente trocada entre beligerantes) ou o que quisermos, mas é importante saber o que dizem. Em termos de “propaganda” presumo que ninguém duvida da capacidade de comunicação do governo de Israel. A construção do discurso e a escolha dos momentos de divulgação são actos cirúrgicos. Depois, há uma rede de “especialistas” distribuídos pelo mundo a dar suporte à narrativa que chega de Israel. A par disso, as “facilidades” dadas aos jornalistas, no terreno, com visitas organizadas a locais que servem essa narrativa; através de imagens e documentos; e através de mais “especialistas”, porta-vozes e testemunhas dispostos a ser entrevistados. Quem acompanha a situação sabe como é fácil o acesso a vídeos, fotografias e declarações de responsáveis políticos e militares sobre as operações na Faixa de Gaza. A par disso temos ainda as conferências de imprensa e os comunicados do governo e dos responsáveis militares. Tudo traduzido, porque o hebraico é acessível apenas a um número reduzido de jornalistas estrangeiros. Tudo isto explica a profusão de declarações e imagens, e a proliferação de “especialistas” da parte israelita nos órgãos de informação. Sabemos que é assim e o governo de Israel limita-se a ser competente em termos de divulgação da sua narrativa.

Quanto ao Hamas, não tem sido assim e é por isso que este documento ganha importância. Ajuda a perceber o que motivou o ataque de 7 de Outubro e, tal como disse António Guterres, não aconteceu do nada.

Incapacidade do Hamas

Por incompetência e certamente por incapacidade dos responsáveis do Hamas, a narrativa desta parte do conflito tem dificuldade em furar a barreira informativa. A informação que nos chega sobre a situação em Gaza é recolhida por jornalistas no terreno – pelo menos 80 já morreram nos bombardeamentos e cerca de 50 locais de trabalho da imprensa foram destruídos, segundo os Repórteres sem Fronteiras – e por vídeos e declarações de responsáveis do Hamas que vão sendo colocados nas redes sociais. Raramente são traduzidos e são divulgados quando é possível. Os responsáveis políticos do Hamas dão algumas conferências de imprensa, no Líbano ou no Qatar, produzem alguns comunicados e pouco mais. Ultrapassar a barreira da língua e passar mensagens de forma eficaz são dois aspectos em que Israel tem uma enorme vantagem.