Se Gaza é o “Inferno na Terra”, sabemos quem é o Diabo!

Hamza Dahoudh e Mustafa Tuhraya, jornalistas assassinados este domingo no sul da Faixa de Gaza. Desde o início da guerra os Repórteres sem Fronteiras dizem que morreram 79 jornalistas em Gaza.

As imagens que chegam da Faixa de Gaza são dilacerantes. Diariamente, após três meses de guerra (93 dias) e mais de dois meses após a entrada dos militares israelitas no território palestiniano, o sangue de milhares de civis – a maioria mulheres e crianças – continua a tingir as imagens que dão conta de ataques indiscriminados, forçando os palestinianos a refugiarem-se em pequenas bolsas do território, cada vez mais encostados ao Mediterrâneo e à fronteira com o Egipto.

Curiosamente, ao contrário de outras guerras e conflitos quase não se ouve a referência a “danos colaterais”, expressão tantas vezes utilizada para lavar a consciência de quem prime o gatilho ou o botão assassino. E não se ouve porque não há forma de falar em “danos colaterais” porque o número de mortos é de tal modo elevado que a ser utilizado esse argumento teria de ser explicado, em simultâneo, quais os alvos atacados e abatidos. Tudo parece ser um alvo potencial. Hospitais, escolas, mesquitas, órgãos de informação, tudo abriga estruturas do Hamas ou é ponto de entrada ou saída em túneis do Movimento palestiniano. Nunca sabemos, ou sabemos vagamente que foram mortos algumas dezenas de “terroristas” e encontrado equipamento militar.

Matar o mensageiro

Nas últimas horas foram assassinados Hamza Waël Dahdouh, jornalista freelancer que trabalhava para a Al Jazeera e Moustafa Thuraya, repórter de imagem freelancer que também colaborava com a Al Jazeera e outros media internacionais. Outro jornalista Hazem Rajab, freelancer, ficou gravemente ferido. O carro em que seguiam no sul da Faixa de Gaza foi atingido por duas vezes, ficando totalmente destruído. A Agência France-Presse (AFP) pediu uma reacção ao exército israelita mas disse que várias horas depois não obtivera qualquer resposta. Num comunicado, em Dezembro, o exército israelita afirmava que “nunca alvejou deliberadamente jornalistas e nunca o fará”. Difícil de acreditar perante os 79 jornalistas mortos em Gaza. Não há memória de tão elevado número de jornalistas mortos numa guerra num tão curto espaço de tempo. No caso dos jornalistas mortos em Gaza nas últimas horas, a AFP cita testemunhas no local que disseram não haver qualquer alvo potencial nas proximidades do local onde o carro dos jornalistas foi bombardeado.

Wael Al Dahdouh

Hamza Dahdoud era filho de Wael Al Dahdouh, o chefe da Al Jazeera em Gaza, ferido em Dezembro num ataque israelita que matou o repórter de imagem, Samer Abu Daqqa. Antes, num outro ataque no final de Outubro, Wael Al Dahdouh, perdeu a mulher, dois filhos, um neto e outros membros da família. Depois dos funerais, Wael Al Dahdouh, pegou no microfone, enfrentou a câmara e continuou a trabalhar. Promete fazer o mesmo, agora, depois da morte do filho mais velho. Depois de secar as lágrimas, Wael Al Dahdouh disse que o Mundo tem de ver o que está a acontecer em Gaza. Ver mesmo, e não através dos olhos – propaganda – israelitas. Wael Al Dahdouh é um exemplo de entrega, coragem e profissionalismo. Apesar da imensa e dolorosa perda que já sofreu nesta guerra, Wael Al Dahdouh nunca expressa raiva ou qualquer desejo de vingança. Pede apenas que o mundo olhe para o sofrimento palestiniano em Gaza, pede apenas que o mundo não feche os olhos nem encolha os ombros.

Indiferença

Infelizmente, para Wael Al Dahdouh, para os palestinianos e para quem ainda não perdeu a capacidade de se indignar, o mundo não se atreve a levantar um dedo contra o que Israel está a fazer. Antes pelo contrário, alguns apoiam. Alguns desses, como é o caso dos Estados Unidos apoiam através do envio de armamento e munições.

Praticamente desde o início da guerra assistimos a declarações patéticas vindas dos Estados Unidos, apelando a Israel para proteger os civis em Gaza. Assistimos agora a Anthony Blinken, em mais um périplo pela região, a lamentar a morte de jornalistas e a dizer que é uma “tragédia inimaginável”, lamentando também o que aconteceu com a família de Wael Dahdouh. Foi evidente o desconforto de Blinken quando foi confrontado com a questão, mas falta saber se as bombas que atingiram os familiares de Wael Dahdouh tinham “marca” norte-americana.

Christophe Deloire, secretário-geral dos Repórteres sem Fronteiras (RSF), escreveu no X que “este massacre insuportável tem de parar. Israel deve ser responsabilizado por esta erradicação do jornalismo em Gaza. Continuaremos a recorrer ao Tribunal Penal Internacional para que seja dada a máxima prioridade aos crimes contra jornalistas. A justiça deve ser feita”.

Os RSF dizem que até agora os ataques israelitas mataram 79 jornalistas em Gaza. Não é possível dizer que são “danos colaterais”. 79 jornalistas mortos!!!

Inferno na terra

Philippe Lazzarini, comissário geral da UNRWA (Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos) evocou um “inferno na terra”, dizendo que “a triste realidade é que os palestinianos de Gaza não estão em segurança em lado nenhum: nem em casa, nem num hospital, nem sob a bandeira das Nações Unidas, nem no norte, nem no centro, nem no sul”.

A Europa parece que acha tudo normal. As instituições e os líderes europeus apelam ao cessar-fogo, e ficam-se por aí. Tão lestos noutras circunstâncias, parecem paralisados. Nem uma acção para forçar Israel a parar, nem uma sanção para, enfim, mostrar alguma coragem e coerência em relação ao que é exigido através das palavras. Nada. E esse nada torna cúmplice quem assim procede. Ficamos sem saber o que dizer quando ouvimos a ministra alemã dos negócios estrangeiros, Annalena Baerbock, apelar a Israel para fazer “uma gestão menos intensiva das operações”. O ridículo também mata.

Até agora, o Ministério da Saúde de Gaza dá conta de 22.835 mortos e 58.416 feridos. Se olharmos para o nosso “rectângulo” talvez percebamos melhor o rectângulo da Faixa Gaza. Em termos proporcionais Portugal teria nesta altura cerca de 100.000 mortos e 250.000 feridos. Mais de 1% da população de Gaza morreu em três meses de guerra. E falta ainda saber quantas vítimas estão nos escombros. O Ministério da saúde de Gaza estima que sejam cerca de 8.000 pessoas.

Olhando de novo para Portugal teríamos quase 10 milhões de portugueses acantonados num canto do país. Na região de Lagos ou em Bragança. À chuva, sem alimentos nem água, sem medicamentos ou tratamento médico… sujeitos à fome e às epidemias. É difícil imaginarmo-nos nesta situação, sem ter para onde fugir nem a quem pedir ajuda, aguardando apenas, quiçá rezando, para não estar no sítio onde vai cair a próxima bomba.

Deixe um comentário