
Quando António Guterres foi eleito Secretário-geral da ONU escrevi neste blogue https://meumundominhaaldeia.com/2016/09/20/antonio-guterres-arrisca-se-a-ser-o-ultimo-secretario-geral-da-onu/ que António Guterres poderia vir a ser o homem com a ingrata tarefa de fechar a porta das Nações Unidas. Passaram mais de sete anos e o perigo mantém-se. Escolhi esta foto para este texto apenas para dizer que António Guterres não é Ban Ki Moon, o antecessor de Guterres no cargo de secretário-geral da ONU. Esta foto (20.01.2009) mostra Ban Ki Moon, em Siderot, junto à Faixa de Gaza, numa conferência de imprensa, tendo como pano de fundo a bandeira de Israel e os restos de rockets disparados a partir do território palestiniano. As armas tinham-se calado há poucas horas nessa guerra em 2008/2009. Tenho para mim que foi um momento em que Ban Ki Moon se deixou instrumentalizar ou a visita foi mal preparada e Ban Ki Moon foi mal aconselhado. Porque também é verdade que a seguir foi a Gaza, visitou locais das Nações Unidas que foram bombardeados por Israel e confessou ter ficado chocado: “este ataque contra as Nações Unidas é indigno e totalmente inaceitável”. Ban Ki Moon exigiu uma investigação e uma explicação completa “para que haja a garantia de que isto nunca mais volta a acontecer. Mas já voltou a acontecer.
O que Israel, desta vez, teria gostado seria algo semelhante com António Guterres, eventualmente, a deixar-se fotografar junto a restos de rockets palestinianos. Convenhamos que seria uma imagem poderosa que a máquina de comunicação israelita se encarregaria de rentabilizar. Mas Guterres não quis esse palco, preferiu ir à fronteira de Gaza com o Egipto para dar visibilidade à necessidade de entrada de ajuda humanitária em Gaza e preferiu o palco da ONU para dizer alto uma verdade que todos já conhecíamos e que a história regista. Isso enfureceu Israel e levou o embaixador israelita na ONU a dizer que a organização é irrelevante. Não é. Mas precisa de fazer muito mais, sendo que esse poder está no Conselho de Segurança e não nas mãos de António Guterres.
O previsível colapso
Depois de ter dito o que era preciso ser dito, António Guterres voltou (06.12.2023) a tomar uma decisão que honra as Nações Unidas enquanto grande casa das nações e enquanto fórum que tem uma obrigação especial quanto ao conflito israelo-palestiniano. Guterres alertou o Conselho de Segurança para a possibilidade de, em breve, haver um “colapso total da lei e da ordem devido às condições desesperadas” dos palestinianos em Gaza, empurrados cada vez mais para sul do território, entalados numa zona que também é bombardeada por Israel e que, por isso estão sem abrigo e sem acesso a meios de sobrevivência básica. Tudo isto diz Guterres, devido aos “bombardeamentos constantes das forças armadas israelitas”. Se o colapso da lei e da ordem acontecer, António Guterres alerta para a impossibilidade de fazer entrar ajuda humanitária.
Ao escrever esta carta, inédita, ao Presidente do Conselho de Segurança da ONU, António Guterres, invoca pela primeira vez o artigo 99 da Carta das Nações Unidas (Artigo 99: O Secretário-Geral poderá chamar a atenção do Conselho de Segurança para qualquer assunto que em sua opinião possa ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais) e confronta o Conselho de Segurança com uma responsabilidade que só ao Conselho de Segurança pertence: a necessidade urgente de decisões que terminem com o massacre em Gaza.
O porta-voz de Guterres, Stéphane Dujarric, sublinhou que o Secretário-geral da ONU invocou “um dos raros poderes que a Carta das Nações Unidas lhe dá” e descreveu a atitude como um “gesto dramático”, acrescentando que o referido artigo 99 da Carta das Nações Unidas não era invocado há décadas.
Para além de insistir na necessidade de um cessar-fogo humanitário, António Guterres utiliza as palavras cirurgicamente e diz que não é apenas a lei e a ordem em Gaza que podem colapsar, estando em risco a própria ajuda da ONU: “Enfrentamos um sério risco de colapso do sistema humanitário. A situação está a deteriorar-se rapidamente rumo a uma catástrofe que poderá ter consequências irreversíveis para os palestinianos como um todo e para a paz e segurança na região”.

Espanha já disse que assina por baixo a carta de Guterres. Pedro Sanchez tem sido um dos apoios fortes de Guterres na questão da guerra na Faixa de Gaza. Do governo português, à hora a que escrevo, ainda não sabemos o que pensa desta carta de Guterres, embora tenha apoiado logo as primeiras declarações de António Guterres que levaram o embaixador israelita da ONU a exigir a renúncia do Secretário-geral da ONU.
Só agora reparam nos colonos?
Neste ultrassensível assunto diplomático, quem quer ver as mortes acabarem em Gaza fica decepcionado com a atitude seguidista de alguns países europeus, para nem falar da instituição União Europeia. Nada se faz sem que surja luz verde de Washington. Se tivermos em conta a imagem que os Estados Unidos construíram no Médio Oriente ao longo das últimas décadas, os países europeus teriam toda a vantagem em distanciarem-se das políticas norte-americanas, mas algo fala mais alto. O último exemplo é o anúncio de criar dificuldades à passagem de vistos a colonos israelitas envolvidos em acções violentas contra os palestinianos (descobriram agora?). Como se a própria presença de colonos em território palestiniano não fosse, por si só, uma violência, e não fosse um crime à luz do Direito internacional.
