!ژن ، ژیان ، ئازادی Jin,Jiyan,Azadi! Mulher,Vida,Liberdade!

Mahsa Amini, pintura de Lukman Ahmad, nascido no curdistão, na fronteira entre a Turqia e a Síria, actualmente a residir nos Estados unidos e com cidadania norte-americana.

Uma mulher, Isabel II, “Rainha de Inglaterra”, tinha 96 anos e morreu a 8 de Setembro. As cerimónias fúnebres prolongaram-se por mais de uma semana, atraíram realeza e governantes de (quase) todo o mundo. Quem não foi ao funeral teve poucas possibilidades de lhe escapar, tal a cobertura mediática, dias a fio.

A atenção desmesurada que foi dada à morte e às cerimónias fúnebres de Isabel II traduziu-se, inevitavelmente, no “apagamento” de outros acontecimentos importantes. Um deles foi a morte de Mahsa Amini, jovem curda iraniana, de 22 anos, detida pela “polícia da moral”, em Teerão, a 13 de setembro, por andar na rua sem ter o cabelo coberto pelo véu. Na versão iraniana estava vestida “de forma inadequada”. Suspeita-se que não terá resistido à violência policial, entrando em coma e acabando no hospital onde morreu três dias depois.

Ainda quanto a Isabel II, terminado o funeral, virou-se a página da História. Mas a História da qual Mahsa Amini faz parte está longe de ter terminado e as ruas do Irão, principalmente da região curda do Irão, são prova disso.

O lastro do Império

Grande parte da comunicação social só encontrou espaço para os acontecimentos no Irão depois de desligados os holofotes no Reino Unido. Ironicamente, o Império no qual reinou Isabel II durante 70 anos tem grandes responsabilidades na situação dos curdos, tal como na situação dos palestinianos. É certo que Isabel II chegou ao trono quando tudo já estava definido, mas teve tempo – 70 anos – para uma palavra ou um pedido de desculpa. Os palestinianos bem que exigiram esse pedido de desculpa devido a uma “Declaração Balfour” através da qual o Império Britânico prometia ceder territórios que não lhe pertenciam. Neste caso, a situação dos palestinianos, Isabel II teve apenas uma “não-acção”: nunca visitou Israel! Quanto aos curdos, Churchill – habitualmente descrito como grande estadista, o que depende sempre do ponto a partir do qual a acção política de Churchill é analisada – e a política de um Reino Unido exaurido pela I Grande Guerra, ajudaram a acabar com o que o Tratado de Sèvres admitia: a autonomia e até independência de uma parte do território dos curdos.

Por estes dias, habituados a serem abandonados logo que deixam de ser úteis a uma qualquer potência ou interesse geo-estratégico, os curdos já estão de novo a ser aproveitados para uma causa que não a do Curdistão.

Aproveitando a morte de Mahsa Amini, as potências ocidentais apontam baterias ao Irão – o acordo sobre o nuclear está ainda por assinar – mas não dizem uma palavra sobre a causa curda. Fala-se de Direitos Humanos, e bem; fala-se de direitos das mulheres, e bem, mas nem uma palavra sobre a causa do Curdistão.

Poucos acreditam na versão iraniana

A televisão iraniana publicou um vídeo que diz ser do momento em que Mahsa Amini sofre um ataque cardíaco e é transportada ao hospital. O vídeo não é suficientemente elucidativo sobre a identidade da mulher em causa, mas o passado de repressão e maus-tratos a mulheres detidas por “atentado à moral”, levam a que poucos acreditem na versão oficial. Para além de Mahsa Amini ter sido detida porque reivindicou liberdade, é uma mulher curda, dois factores que alimentam os protestos.

Logo a seguir à morte de Mahsa Amini, muitas ruas de Teerão foram tomadas por manifestantes. O Presidente do Irão telefonou à família de Mahsa e prometeu uma investigação. Numa entrevista ao canal de informação curdo iraquiano RUDAW, o pai de Mahsa Amini disse que a filha estava de perfeita saúde, sem antecedentes clínicos e que foi agredida na cabeça aquando da detenção e depois enquanto esteve detida. Informação que disse ter dado ao presidente iraniano quando falaram ao telefone. O pai de Mahsa Amini disse ainda que o pedido de autópsia que fez, não foi aceite pelas autoridades.

O chefe da polícia de Teerão “jura” que a morte de Mahsa foi um acidente lamentável e que não houve qualquer comportamento inapropriado da parte da polícia. Poucos acreditam nestas palavras.

Repressão

À hora a que este texto é escrito a televisão oficial iraniana dá conta de 41 mortos durante os confrontos mas a ONG Iran Human Rights (com sede em Oslo) refere pelo menos 54 mortos. Há centenas de feridos e muitas centenas de pessoas detidas. O Comité para a Protecção dos Jornalistas listou 11 jornalistas detidos. A Amnistia Internacional acusa as forças policiais de utilizarem “bala real” contra os manifestantes.

Em curdo, contra a opressão.

Para além de Teerão e de outras cidades, as maiores manifestações surgiram em território curdo. Mahsa Amini nasceu em Saqqez (onde foi sepultada), a norte da capital da região, Sannandaj. “Abaixo o ditador (Khamenei), abaixo a república islâmica! Não ao véu islâmico” têm sido as palavras de ordem. Muitas mulheres queimaram o véu publicamente e entoaram a palavra de ordem feminista: “Jin, Jiyan, Azadi” (Mulher, Vida, Liberdade). Apesar do bloqueio da Internet, têm passado para o exterior as imagens da revolta e das manifestações, e também da intervenção das forças de segurança.

Mapa do curdistão iraniano publicado pelo Instituto Curdo de Paris.

O Ministro do Interior do Irão acusa os manifestantes de “seguirem os Estados Unidos, os países europeus e os grupos contra-revolucionários”, numa tentativa de desestabilizar o Irão. Em resposta aos protestos, saiu à rua uma manifestação de apoio ao governo.

Mas na política interna, também há forças políticas que querem reformas: a União Popular do Irão Islâmico, considerada próxima do ex-presidente Mohammad Khatami, exigiu este sábado (24) que as autoridades alterem a lei sobre a obrigatoriedade do véu.

Não por acaso, a Guarda Revolucionária do Irão bombardeou o Curdistão iraquiano onde estão algumas bases do Partido Democrático do Curdistão Iraniano e do Komala (partido armado dos cudos do Irão), acusando-os de estarem a fomentar os protestos no Irão.

Ataques iranianos em território curdo no Iraque. Foto: Kurdistan24.net

O “preço” de ser curdo(a)

O Instituto Curdo de Paris lembra que as mulheres curdas, de tradição laica, gozam de maior liberdade em comparação com as outras compatriotas na maioria das sociedades muçulmanas e são muito relutantes em usar o véu. Estão também muito envolvidas politicamente e pagam um alto preço pela defesa dos seus direitos.

Os curdos são um povo – talvez 36 milhões de pessoas – quase totalmente ignorado por grande parte do ocidente na questão que para eles é a mais importante: a sua autonomia. Houve muitas referências quando combateram e travaram a organização Estado Islâmico (na Síria e no Iraque), mais recentemente quando o Presidente turco fez deles moeda de troca para admitir a entrada da Finlândia e da Suécia na NATO (o que ainda se está para ver…), mas para além disso, muito pouco. Aliás, muitos países ocidentais recusaram acolher os filhos e as mulheres dos combatentes do Estado Islâmico, deixando-os em campos geridos pelos curdos, como se fossem os curdos que tivessem de arcar com esse fardo. Não se fala dos curdos quando a Turquia bombardeia e mata combatentes curdos no norte do Iraque ou no norte da Síria. Aliás, tal como em relação aos palestinianos, o que o ocidente faz com mais facilidade é classificá-los de terroristas.

Chorar por quem?

A juntar às duas mulheres já referidas, não há muito tempo, Shireen Abu Akleh (palestino-americana), jornalista da Al Jazeera, foi morta por um soldado israelita quando estava em reportagem na Cisjordânia. Com muita relutância, Israel reconheceu a “forte probabilidade” de ter sido uma bala israelita que matou Shireen, mas não de forma deliberada e, portanto, não fará qualquer investigação criminal.

É assim que a história destas três mulheres, do Império britânico, dos curdos e dos palestinianos, se toca: a Rainha, que nunca teve uma palavra sobre a herança que o Império britânico deixou a curdos e palestinianos; Shireen, que muito provavelmente não estaria na Cisjordânia se a Declaração Balfour não tivesse existido; e Mahsa, que muito provavelmente não teria necessidade de usar o véu se o território curdo não tivesse sido espartilhado entre quatro países e fosse agora uma região autónoma ou independente.

Nestas três mortes, cada um chora as mulheres que considera merecedoras de reconhecimento. As que lutaram pela Liberdade, sem dúvida que o merecem.

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